terça-feira, 1 de março de 2011

Princípios de Interpretação Bíblica

De nada adianta sermos excelentes comunicadores, sabermos utilizar muito bem as modernas técnicas didáticas, se entendermos mal os ensinos bíblicos, e os passarmos adiante de forma inadequada.
A disciplina da interpretação é chamada de exegese ou hermenêutica.
Existe entre os teóricos uma certa divergência nesta questão.
D. A. Carson, Ph. D. pela Universidade de Cambridge, atualmente professor de Novo Testamento na Trinity Evangelical Divinity School, em seu livro A Exegese e suas Falácias, considera todo o trabalho de interpretação como exegese.
Gordon D. Fee e Douglas Stuart, no livro Entendes o que Lês?, fazem uma diferenciação entre a exegese e a hermenêutica. Segundo eles, exegese diz respeito ao resgate do significado do texto para os leitores originais, e abrange todas as técnicas de análise histórico-crítico-gramatical, ao passo que a hermenêutica é a arte de aplicar hoje os princípios descobertos no texto.

Minha posição quanto a essa questão é que não precisamos nos preocupar com estes pormenores acadêmicos. A título de simplificação utilizo a expressão "Interpretação Bíblica" como significando todo o trabalho de interpretação, do início da análise gramatical até a aplicação final do texto para a nossa realidade atual.

Na verdade, todos lemos a Bíblia e deciframos subjetivamente o que ela significa para nós. Segundo as doutrinas do sacerdócio universal e da obra didática do Espírito Santo, cremos que qualquer cristão pode entender o conteúdo básico das Escrituras. Rejeitamos o dogma católico de que o entendimento da Palavra de Deus só pode ser adequadamente obtido através da ingerência de um magistério da Igreja ou das proposições do Papa.
Apesar disso, existem alguns princípios gerais que precisam ser conhecidos e utilizados na interpretação, principalmente pelos professores e pregadores. Nessa apostila compartilharemos os mais importantes.

Um dos grandes desafios da interpretação é cultural.
A Bíblia foi escrita para pessoas de outro tempo.
Isso pode parecer estranho, mas vou já explicar. Quando, por exemplo, o apóstolo Paulo sentou-se para escrever a sua carta aos Efésios, ele não estava pensando nos cristãos brasileiros. Sua atenção estava voltada para pessoas do século 1, que viviam dentro da cultura greco-romana-judaica.
O mesmo podemos dizer do autor do Apocalipse. Quando João escreveu sua obra, utilizou uma linguagem simbólica que era comum principalmente aos cristãos judeus de seu tempo. Em sua época, eram comuns os escritos apocalípticos, que buscavam transmitir mensagens de reforço na fé em linguagem cheia de imagens e significados ocultos.

Hoje, quando lemos a Epístola aos Efésios ou o Apocalipse, ficamos às vezes desnorteados com algumas expressões e, pior ainda, podemos compreendê-las mal. Daí podemos inferir que a primeira tarefa do intérprete bíblico é entender o que as Escrituras significaram para os seus primeiros destinatários. A partir desse ponto, é que podemos estabelecer qual a aplicação da mesma para hoje.

Serão válidos para hoje o ósculo santo, o véu no rosto para a oração (1Co 11.13, 16.20)? Para respondermos isso precisamos primeiro saber: "o que significava o ósculo e o véu na sociedade daquele tempo?" Somente a partir daí é que poderemos transpor essa barreira cultural, e fazer das Escrituras algo vivo para o homem do século vinte. Para isso existem vários instrumentos disponíveis já em língua portuguesa: dicionários e manuais, introduções e comentários, livros dedicados a reconstruir os tempos bíblicos e atlas que permitem-nos visualizar o arranjo político-geográfico dos tempos do Velho e Novo Testamentos. Além disso, todo esse conhecimento introdutório pode ser conseguido em um só volume.
Se o professor ou pregador não tem como adquirir uma biblioteca completa, poderá economizar bastante comprando uma Bíblia de Estudo, das quais sugiro a Bíblia Vida Nova, do Dr. Russel Shedd.

Nove princípios muito úteis:

É preciso distinguir entre texto descritivo e texto prescritivo. Descritivo é o texto que descreve algo, narra um acontecimento. O fato de algo ser contado na Bíblia não significa que o mesmo é regra para hoje. Os relatos históricos, por exemplo, transmitem-nos preciosas lições espirituais. No entanto, não devemos tirar deles doutrinas absolutas para nós hoje. Só podemos tirar doutrina de história se houver concordância dos textos bíblicos doutrinários, principalmente nas epístolas do Novo Testamento. Prescritivo é o texto que traz regras, ensinamentos e mandamentos para nós hoje. Vemos nas Escrituras passagens destinadas claramente à instrução e doutrinamento.

Pergunte sempre qual o significado mais simples, mais claro, mais singelo. A Bíblia é um livro que pode ser entendido por todo cristão, do erudito até o semi-analfabeto. A verdade mais clara é sempre preferível aos posicionamentos nebulosos e "profundos" (às vezes sem fundo mesmo!).Isso não significa que todo o conteúdo bíblico seja fácil de entender. Em algumas partes do mesmo, precisaremos de auxílio adicional, e aqui entra a contribuição das boas introduções, manuais e comentários. E não apenas isso. Algumas passagens, ficarão simplesmente sem interpretação, por completa falta de informação. Mesmo o maior estudioso não sabe tudo sobre a Bíblia. Por isso mesmo devemos fugir de interpretações que exijam verdadeiras ginásticas mentais. Só devemos ir ao complexo se houver indício de revelação progressiva.

Não dê atenção a textos obscuros. Pode parecer estranho, mas esse é um princípio que eu considero dos mais importantes. Alguns indivíduos tem o prazer em escarafunchar curiosidades inócuas tais como quem era o jovem nu do final do Evangelho de Marcos (Mc 14:51-52), os detalhes do batismo pelos mortos citados por Paulo em 1Co 15:29, acerca da pregação de Cristo aos espíritos em prisão, citada em 1Pe 3:18-20. Assim, perde-se tempo analisando detalhes irrelevantes. Essas questões podem parecer um "prato cheio" para os eruditos e técnicos textuais do Novo Testamento, mas, na maioria das vezes, dizem pouco ao cristão comum.Partamos do princípio que todas as principais doutrinas e ensinamentos para a nossa vida prática estão expostos de modo claro na Bíblia. Os textos complicados, porquanto bíblicos, e por isso, valiosos, não são fundamentais para a nossa fé.Ninguém vai deixar de ser salvo, por exemplo, se desconhecer o significado do número da besta, 666, de Ap 13. O trabalho do intérprete é aprender os ensinos claros e passá-los adiante.
Não devemos buscar decifrar mistérios, especializarmo-nos em uma espécie de esoterismo cristão. Tal insistência produz obsessão por posicionamentos obtusos, que não são saudáveis para a Igreja de Cristo.

A terra por si mesma frutifica, primeiro a erva, depois a espiga e, por fim, o grão cheio na espiga — Mc 4.28.Algumas verdades foram reveladas em semente no Velho Testamento, e só no Novo Testamento encontramos sua plena expressão, como por exemplo o ministério de Cristo, a Igreja, a nova dimensão da guarda do sábado, a situação pós-morte, etc.Deve-se considerar a revelação progressiva no processo de interpretação. Alguém pode ler Ecl 9.5 e concluir uma doutrina errônea, afirmando que "os mortos não sabem cousa nenhuma". Os adventistas, por exemplo, fazem isso, ensinando que depois da morte a pessoa fica inconsciente, no túmulo, aguardando o dia da ressurreição. Essa é uma interpretação que desconsidera claramente a revelação progressiva. O texto de Eclesiastes não pode ser interpretado sem considerarmos as passagens do Novo Testamento que falam sobre o estado intermediário, quando estaremos com Cristo no céu aguardando a ressurreição. Nesse caso, houve uma progressão da revelação.

O melhor comentário sobre a Bíblia é a própria Bíblia. Compare os princípios encontrados com o restante das Escrituras. Se houver reafirmação da verdade, principalmente no Novo Testamento, devemos ensiná-la com convicção. Essa regra é chamada pelos intérpretes de "analogia das Escrituras", e, bem utilizada, evita uma série de erros grosseiros de interpretação.O intérprete realiza o seu trabalho convicto de que a Escritura não se contradiz. Algumas verdades são difíceis de conciliar, mas isso não significa que sejam excludentes.Um exemplo disso é a questão da responsabilidade humana e da soberania divina. Alguns afirmam que Deus é quem decreta e dirige todas as coisas. Ele domina sobre tudo, e todas as coisas ocorrem segundo o plano predeterminado pelo Senhor (Sl 139.16; Pv 21.1; Is 46.9-11; Mt 10:29; At 2.23, 4:24, 28, 13.48; Rm 8.28-30, 9.8-24; Ef 1.5, 11; I Ts 5.9; 1Pe 5.11; Ap 1.6). Outros afirmam que, na verdade, o homem é responsável diante de Deus por seus atos. A existência do mal no mundo, e as conseqüências ruins provenientes do pecado são responsabilidade dos anjos e dos homens e não de Deus (Ez 18:29). Os homens são responsáveis diante de Deus pela sua rejeição ao Evangelho de Cristo, e quem não crer no Filho de Deus trará sobre si a justa condenação (Jo 5.24, 40, 6:29, 47-51).Os cristãos bíblicos aceitam ambos os ensinos como expressão da mais pura verdade de Deus. Aqui encontramos uma antinomia. Antinomia, conforme o Dicionário Aurélio, é o "conflito entre duas afirmações demonstradas ou refutadas aparentemente com igual rigor". O problema, nas antinomias, não está na Bíblia, e sim na finitude de nossa compreensão. O fato de não entendermos alguma coisa não significa que ela esteja errada. O professor ou pregador deve ensinar tanto a soberania divina quanto a responsabilidade humana. Algumas respostas a tais questões só nos serão fornecidas na eternidade.

Cuidado com as "novas revelações".Quando falamos de interpretação, o Espírito Santo não concede nova revelação, e sim iluminação. Não há nova verdade a ser acrescentada sobre o texto bíblico. Há nova iluminação, ou seja, são-nos mostrados novos aspectos da verdade que são relevantes para a nossa situação atual. A verdade é apenas uma. As aplicações dessa verdade é que são diversas. Somos incumbidos de entender a verdade e, sob a unção do Espírito de Cristo aplicá-la. Não fomos chamados para descobrir novas coisas, mas para ensinar as velhas e maravilhosas verdades de forma nova, pois elas são sempre necessárias em nossa geração.

Observe o Contexto.Para interpretar contextualmente, há de se levar em conta o conteúdo geral de todo o documento, se ele é um discurso unificado. Então, o matiz de pensamento que circunscreve a passagem, pois que mui freqüentemente afeta ele o sentido dos termos a interpretar-se. Em algumas ocasiões, como por exemplo, numa interpretação de uma epístola, o seu "teor geral dita o sentido real da passagem".Quando desconsideramos o contexto, estamos sujeitos a errar a nossa interpretação. Um exemplo clássico é Ap 3.20: "Eis que estou à porta, e bato; se alguém ouvir a minha voz, e abrir a porta, entrarei em sua casa, e cearei com ele e ele comigo". Tenho ouvido muitos pregadores que usam a passagem como uma espécie de apelo evangelístico. O convite do Senhor, no entanto, neste caso, não é dirigido aos pecadores para que eles se arrependam e creiam no evangelho. O convite de Cristo aqui dirige-se aos crentes orgulhosos. O versículo em questão faz parte da carta de Jesus à Igreja de Laodicéia (Ap 3.14). Um modo eficaz de olharmos os textos contextualmente é os observarmos em blocos redacionais.Exemplo:Evangelho de João.21 Capítulos, divididos em duas partes:caps. 1-13: O Livro dos Sinais;caps. 14-21: O Livro da Glória.Objetivo do livro: Gerar fé nos leitores, de que Jesus Cristo é o Filho de Deus (Jo 20.31).Seção é uma divisão maior do livro. No caso do Ev. de João, podemos afirmar que existem duas grandes seções: Sinais e Glória.Capítulo é uma unidade menor dentro de uma seção. É interessante dividirmos os parágrafos dentro dos capítulos para entendermos melhor o texto.Perícope ou texto analisado é a unidade menor dentro de um capítulo. Pode abranger um ou mais parágrafos. O texto estudado pode abranger apenas parte de um parágrafo, ou mesmo um só versículo. É importante estabelecer a relação deste texto com o capítulo, com a seção e com o restante do livro. Essa análise ampla permite uma interpretação harmoniosa e equilibrada.A interpretação deve levar em conta toda essa estrutura textual. Chamamos de contexto imediato tudo aquilo que está próximo ao texto estudado (parágrafo e capítulo).Chamamos de contexto remoto tudo aquilo que está distante, mas ao mesmo tempo abrange o texto estudado (seção— divisões maiores da obra, e o livro como um todo).Devemos sempre perguntar ao texto: qual o contexto próximo? O parágrafo está tratando de que tema? E o capítulo? E a seção? Aqui estabeleceremos uma relação entre os elementos textuais, e estaremos mais aptos a discernir o significado da passagem.Muitos usam textos deslocados para provar as suas doutrinas preferidas.

Ao interpretarmos um texto, fujamos da interpretação alegórica. O texto normalmente significa aquilo que está escrito mesmo. Em ocasiões iremos nos defrontar com figuras de linguagem. Cristo diz, por exemplo, que ele é "a porta" (Jo 10.7). Nesse caso, o bom senso nos diz que cabe aqui uma interpretação simbólica. Em outras situações, porém, devemos cuidar para não alegorizar aquilo que é literal.Ouvi certa vez uma pregação sobre o casamento de Isaque relatado em Gn 24. O pregador disse que o servo de Abraão era um "tipo" do Espírito Santo, e que Rebeca é um símbolo da Igreja. Se formos utilizar tais artifícios em nossa interpretação, poderemos transformar o texto bíblico naquilo que quisermos. Devemos levar a Bíblia a sério. Os casos onde não estiver clara uma figura de linguagem, ou onde o estilo de literatura não for claramente figurativo, tais como nos Salmos e no Apocalipse, devemos sempre interpretar literalmente. O bom senso e a liderança do Espírito Santo nos garantirão bom resultado nessa empreitada.

Sei que, inicialmente, a observação dos nove princípios acima poderá parecer um pouco complicada. Alguns, vendo a grandeza da tarefa, poderão até pensar em desistir. Quero incentivá-los a perseverarem. Deus recompensa nosso esforço de buscarmos entender melhor a sua Palavra. A situação assemelha-se a andar de bicicleta. Nas primeiras vezes que tentamos tivemos dificuldades. Alguém nos empurrava e, mesmo com rodinhas, levávamos uns bons tombos! Com o tempo, porém, fomos adquirindo confiança e coordenação. Começamos a pedalar com firmeza e ganhamos equilíbrio. Não precisamos mais de quem nos empurrasse. Depois, foram retiradas as rodinhas, e hoje passeamos prazeirosamente com nossas bicicletas. Sentamos no selim, e nem notamos que estamos tendo de coordenar um monte de movimentos ao mesmo tempo. O mesmo ocorre com a IB. Depois de certo tempo, adquiriremos o hábito de caminhar seguindo a trilha destas nove regrinhas, e exploraremos as ruas do Antigo e Novo Testamentos. Faremos isso prazerosamente, sem tantas dificuldades. Aqui, é claro, termina a similaridade com o treinamento na bicicleta.Jamais poderemos dispensar a ajuda de nosso treinador: o Espírito Santo. Ele sempre estará conosco neste caminho, e nosso destino será a terra da boa doutrina, de onde poderemos encontrar ao Senhor Jesus Cristo, e desfrutar por ele do gostoso fruto da árvore da vida. A Ele toda honra e toda glória.

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